"Lar, doce lar" Uma história de dor, desencontros e morte, mas também de redenção. Por Mário Latino Publicado pela primeira vez em 1974, Ken Parker trazia os argumentos de Giancarlo Berardi e os excelentes desenhos de Ivo Milazzo. Rapidamente este western tornou-se um quadrinho “cult” graças ao enfoque humanista dado por seus autores. É que o protagonista diferia totalmente do herói típico das histórias de caubóis. Para começar, ele era uma mistura de scout e caçador que nem sequer carregava um Colt. Isso aí, sua arma era um Flintlock modelo 1803, daqueles que se carrega pelo cano e deixa um buraco daqueles. Um fuzil anacrônico, vamos convir, que não lhe impediu de se envolver em tiroteios monumentais, bem ilustrados pelo traço leve, sintético e altamente estilizado de Milazzo. Com um certo ar intelectual e a aparência física emprestada do ator Robert Redford, Ken Parker posicionou-se ao lado do Tenente Blueberry como as maiores contribuições das histórias em quadrinhos ao mito do faroeste. Como fã de histórias de caubóis, tenho que confessar que aprendi a admirar o trabalho arguto e equilibrado da dupla Berardi e Milazzo nas histórias de Ken Parker. Não é uma tarefa fácil já que os enredos brilhantes e cheios de humanidade do primeiro são muitas vezes ofuscados pelo traço nervoso do grande Ivo Milazzo, para mim um dos grandes das histórias em quadrinhos ao lado do incomparável Alex Toth. E é que sua linha fina e muitas vezes incompleta e nervosa que se alterna com grandes pinceladas de preto não é aceita por aqueles leitores que se acostumaram a um desenho mais certinho como o de Civita ou de Ortiz, só para citar alguns dos mestres do gênero. Não, o traço de Milazzo exige que o leitor complete a cena com a imaginação, numa releitura que exige muito conhecimento das técnicas cinematográficas e do western como universo narrativo. Dito isto, tenho que admitir que tive grandes problemas em escolher “Lar, doce lar” como aquela que é, para mim, a melhor história da dupla. Porque na escolha tive que descartar narrativas maravilhosas como “Um príncipe para Norma”, “Um hálito de gelo”, “Homens, animais e heróis”, “Um homem inútil”, “Chemako”, “Ada”, “Sob o céu de México”, “Lily e o caçador”, “Aventura humana” e “Terra dos heróis”, entre outros. A história começa com nosso herói, o rastreador do exército melhor conhecido pela alcunha de “Rifle comprido”, voltando para Buffalo, sua cidade natal, após passar pelo lugar onde oito anos atrás seu irmão fora escalpelado. Ao mesmo tempo, outro homem vindo de Rapid City, Dakota do Sul, também cavalga em direção a Buffalo. Este homem, Dick Eliot, é um pistoleiro que está fugindo de antigos companheiros de trapaças aos que deixou a ver navios depois de ter ficado com o dinheiro do assalto a um banco. A
partir desse momento, como num bom drama shakesperiano, as histórias
se entrelaçam, pois acabamos sabendo que Eliot e Parker, que foram
companheiros de infância e de adolescência, saíram
da cidade na mesma época, embora por razões diferentes como
descobriremos mais adiante. Em contraposição, a chegada de Dick ao lar paterno é marcada pelas recriminações e a severidade do pai disciplinador, um reverendo por sinal, incapaz de abraçar o filho ou de dar-lhe um pouco de carinho. Velhas rusgas afloram rapidamente e, depois de um diálogo explosivo, Dick decide encurtar sua visita. Já de saída, acaba se encontrando com Ken Parker e ambos decidem lembrar um pouco dos velhos tempos diante de um copo de cerveja. É nesse diálogo que descobrimos que Parker e Elliot disputaram na juventude o amor de uma garota de nome Lena Kolbe. Naquela época, Lena escolhera Elliot e coube ao jovem Ken acompanhar de perto o desenvolvimento daquele romance. É quando, ao perguntar-se ambos o que teria sido de Lena, o garçom interrompe a conversa para dizê-lhes que Lena Kolbe pode ser encontrada no bairro da luz vermelha. Os dois amigos vão até a casa dela e a mulher ao vê-los tenta disfarçar sua condição atual. Mas o esforço se revela inútil, já que eles sabem que ela é agora uma prostituta. Descobrimos, então, que Lena ficara grávida de Elliot e, depois de perder o pai, fora obrigada pelas convenções sociais da época a se prostituir para conseguir sobreviver. Elliot argumenta que ele não sabia de nada, nem sequer que ele tem um filho com oito anos de idade. É um diálogo amargo e ríspido em que Lena o responsabiliza por sua atual situação. Nesse momento, o garoto acorda e aparece na sala. Parker fica comovido com a criança e brinca um pouco com ela. Então aparece o gigolô de Lena que rapidamente entende o que está acontecendo e observa que se Elliot quiser ficar com a mulher terá que pagar. Então, movido à raiva, Dick espanca o homem. Depois que este vai embora, Lena o recrimina por ter agido dessa forma já que vai sobrar para ela. Mas Elliot lhe diz que sua vida vai mudar e que a partir desse momento tomará conta dela e da criança. Ainda lhe pede que arrume suas coisas para sair daí quando ele voltar com uma carroça. Ambos se beijam e Lena acredita, com lágrimas nos olhos, que aconteceu um milagre. Mas a realidade cruel fica já evidente quando, longe de Lena, Elliot confessa a Parker que ele não tem a mínima intenção de constituir família. Se acaso a levará para outra cidade onde a visitará de tempos em tempos, entre uma trapaça e outra. Nesse momento ambos são cercados pelos antigos parceiros do pistoleiro e levados para fora da cidade. Numa caverna o antigo parceiro interroga Elliot sobre o dinheiro que ele levou e Parker associa os detalhes ao assalto a um banco em que, meses atrás, um caixa morrera. Elliot ri e diz que gastou tudo ante o olhar incrédulo do ex-cúmplice que, obviamente, não acredita. Então, e diante da possibilidade de ser torturado, Dick propõe que Parker saia à procura do dinheiro e lhe indica um esconderijo da época em que eram crianças. Parker, enfiado naquela arapuca a contragosto, topa. Quando parte, o chefe do grupo orienta um de seus comandados para segui-lo e, depois de este ter encontrado o dinheiro, acabar com ele. Neste momento a trama se bifurca, mostrando quase simultaneamente Ken Parker sendo seguido pelo malfeitor e Lena arrumando seus pertences enquanto o garoto confessa para a mãe que sempre teve medo quando ela saia para fazer limpezas noturnas. Valendo-se de sua experiência como batedor do exército, Parker engana seu perseguidor e o surpreende. Ambos rolam pelo chão numa luta a morte enquanto Lena ouve alguém batendo à porta e vai abrir, pensando que é Dick Elliot, dando de cara com o gigolô. No momento em que Parker enterra uma faca no peito do facínora, Lena é morta e ficamos sabendo disso pelo rosto aterrorizado do garoto. É, talvez, o momento supremo da história, conduzida magistralmente por um mestre da narrativa visual, mas ela não acaba aí. Parker
volta à caverna e, depois de procurar muito, encontra outro acesso
à mesma que ele e Elliot utilizavam quando eram crianças.
Entrando pelo buraco na pedra surpreende o bando pela retaguarda. Na troca
de tiros morrem os três pistoleiros e Elliot fica gravemente ferido.
Parker ainda se oferece para levá-lo ao médico, mas ele
se recusa sabendo que tem pouco tempo de vida e ambos se separam, um em
direção a Buffalo e o outro, sabendo que a vida lhe escapa
das mãos, à procura de um lugar para morrer. Elliot ainda
encontrará seu fim nas mãos de um detetive da agência
Pinkerton que se encontra no seu encalço enquanto Parker ao chegar
à cidade se inteira pelo xerife da morte de Lena. Quando o representante
da lei comenta que não sabe o que fazer com a criança, Parker
observa que ele conhece alguns familiares que eventualmente poderão
tomar conta dela. Assim, o agora órfão Benji encontra um
lar e o reverendo Elliot uma nova chance de criar um menino, tentando
não repetir os erros do passado. É ou não uma boa
história? |
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