Mort Walker

Um dia no Quartel Swampy

por Mário Latino

Acho que foi John T McCutcheon, o lendário cartunista político do Chicago Tribune quem disse que “se a gente viver o suficiente é enorme a possibilidade de se converter numa lenda viva do cartum”. Mesmo que ele estivesse de gozação, Mort Walker levou essa frase a sério já que aos 87 anos continua desenhando a tira Beetle Bailey (Recruta Zero) por mais tempo que qualquer outro artista na história das comic strips.

Mort Walker

Para quem se amarra em estatísticas, a tira do Bailey foi publicada por primeira vez em 04 de setembro de 1950 e em apenas 12 jornais. É que no começo a ação transcorria numa universidade e o ambiente das fraternidades estudantis não empolgou tanto os leitores como o autor, ele mesmo um ex-universitário, pensara. Daí que nos meses subseqüentes só 12 jornais se interessaram nela. A tira arrastava-se, assim, para um fim melancólico quando Walker teve a idéia de fazer que o protagonista entrara para o Exército. Isso aconteceu em março de 1951 e tal decisão mudou o rumo da história.

A partir dessa mudança, mais jornais começaram a publicar a tira, mas foi só quando o jornal Star and Strippes, que era o jornal oficial do exército, decidiu banir a tira por ridicularizar seus oficiais que as vendas dispararam.

Embora a tira fosse uma sátira à vida na caserna, é evidente que Mort Walker estava fazendo uma metáfora da sociedade moderna e ridicularizando seus conceitos de hierarquia e autoridade. Ao mesmo tempo estava nos dando as armas para enfrentá-los.

Mas Beetle Bailey não se limita a ser uma sátira da condição humana. A tira é, ainda, um recorte da arte das comic strips, pois nos mostra como as habilidades de seu autor evoluíram com o passar dos anos. Se no começo ele desenhava no estilo “big-foot” com uma clara influência de John Gallagher e Tom Henderson, dois famosos cartunistas da década de 50, Walker levou seu traço a um grau de refinamento único, mistura de minimalismo e elegância que não passou despercebido entre seus pares. E é esta capacidade de abstração, tão desejada por muitos e conseguida por tão poucos, que contribuíram ao humor sofisticado de suas tiras.

Mort Walker

O talento de Mort Walker rendeu-lhe muitos reconhecimentos na sua profissão. Em 1953 ele abocanhou o Reuben, premiação concedida pela National Cartoonists Society, como cartunista do ano.

Como se faz um artista

Addison Morton Walker nasceu em 1923 em El Dorado, Kansas. Seu pai era arquiteto e ao mesmo tempo poeta e músico nas horas vagas enquanto a mãe fazia ilustrações para jornais. Quando tinha 5 anos de idade, a família se mudou para Kansas City. Eram os tempos obscuros da Depressão e o pai tinha que ir onde aparecia trabalho. Assim, perambularam por Amarillo, Texas e Bartlesville, Oklahoma. As acomodações, sempre temporárias, eram precárias e Walker sempre lembrou desses dias em que a mãe deles tinha que improvisar o banho das crianças numa tina sobre a pia da cozinha. Aí voltaram para Kansas City e se estabeleceram definitivamente.

Como a maioria dos cartunistas, o garoto Walker aprendeu a ler com as tiras dos jornais que seu pai levava para casa. Moon Mullins, desenhada por Frank Willard, era a tira preferida do velho e rapidamente se tornou a dele. Mais tarde, imitando o traço de Willard, Mort enveredou de forma prematura na arte da charge.

A mãe, entretanto, tinha se estabelecido como ilustradora no jornal local de Kansas City. Não era raro que em datas especiais como Ação de Graças e na Páscoa, o pai escrevesse um poema que sua mãe ilustrava e desse um jeito de publicar na primeira página do jornal.

Mas eram tempos duros e a família toda tinha que trabalhar fazendo o que aparecesse. Vendiam revistas de porta em porta, pintavam cercas, e cortavam grama. Foi então que, aos 11 anos, Walker vendeu seu primeiro cartum. O valor, um dólar, era simbólico, mas era, também, o começo. “Era aí que o dinheiro estava”, relembra Mort Walker com ironia. Foi também a deixa para largar a escola e, munido com um velho exemplar da Writer Digest em que aparecia a lista de revistas que publicavam cartuns, bombardear os Estados Unidos de costa a costa com suas ilustrações. A tática se revelou acertada, pois aos 13 anos tinha conseguido vender mais de 300 cartuns!

A decisão de largar a escola não durou muito e Walker voltou às salas de aula, desta vez numa turma de alunos especiais. Quando percebeu, era o vice-presidente de sua turma. Mais tarde, virou presidente do grupo de arte e da Associação de Jovens Cristãos (YMCA). Também era diretor do jornal da associação. Era uma característica, a capacidade de liderar, que o acompanharia sempre.

Não satisfeito com tanta atividade, ainda conseguiu emprego nas lojas Hallmark, no departamento de entregas. Estando aí, descobriu que estavam oferecendo uma vaga para ilustradores e se candidatou a ela. O departamento de artes da Hallmark trabalhava com cartões para aniversários, casamentos e batizados e o fazia de forma convencional. É dizer, com desenhos de florzinhas fosse para homens ou mulheres. A chegada de Walker revolucionou tudo, pois ele introduziu o cartum nas mensagens. E o fez tão bem que até o próprio Mister Hall, fundador da empresa, passava no escritório dele para encomendar cartões originais. Com o dinheiro que ganhava aí, Mort se ajudava para pagar a escola.

Paralelo a isso, também criava tiras em quadrinhos. Submeteu algumas delas ao Register Tribune Syndicate em Des Moines e, finalmente, teve uma tira publicada no Kansas City Journal, The Lime Juicers. Na verdade tratava-se de um acordo pelo qual ele se comprometia a desenhar uma charge diária, pela que recebia, sendo que a tira era de graça. Tal acordo durou um ano.

Nessa época viajou para Nova Iorque com um amigo para tratar de vender uma tira de aventuras. Chamava-se In the Wake of the Wanderers e era uma cópia rasa de Terry e os Piratas de Milton Caniff. A empreitada não deu em nada, mas permitiu ao jovem Mort ver que o quadrinho de aventuras não era sua praia.

Ao terminar o ensino médio já decidira que iria para a Universidade de Missouri, onde tinham um dos melhores cursos de jornalismo do pais. Intuia que no seu ofício precisava dominar a arte da escrita e não estava disposto a pagar para que alguém escrevesse para ele.
Quando Míster Hall soube que ia para a Universidade ficou apavorado com a possibilidade de perder a seu melhor artista e lhe propôs que continuasse desenhando para eles. Walker topou e pelo preço combinado de um dólar por cartão, desenhava até 75 cartões por semana, que enviava pelo correio. “Ganhava mais até que meu pai”, lembra às gargalhadas.

Foi, então, que a guerra o arrastou. Ao outro lado do mundo, grandes exércitos se enfrentavam pelo domínio do planeta e, mesmo que quisesse, não havia como evitá-lo. Em janeiro de 1943 Mort Walker era outro novo recruta do exército norte-americano. E sua experiência lhe serviria, mais tarde, para compôr uma das mais afamadas personagens das tiras em quadrinhos. Mas isso ele ainda não sabia.

Um cartunista nas forças armadas

Diferentemente do que se poderia imaginar, o periplo de Mort Walker pelas forças armadas parecia tirado de um roteiro de comédia. Enviado ao quartel de paraquedistas na Florida e depois dos primeiros dias de adaptação tentou se encaixar na equipe de boxe. Era taludo e metido a marrento e achou que ia se dar bem até que encontrou outro soldado mais marrento que o nocauteu e decidiu, sabiamente, que o boxe não era para ele.

Mort Walker

Dos Paraquedistas foi enviado a uma unidade de conserto de radio-comunicadores em Camp Crowder, mesmo sem entender nada do ofício! Estando aí soube que existia um programa para que os soldados voltassem a estudar. Inscreveu-se nele e foi enviado a Laramie para cursar psiquiatria, mas o que encontrou foi um bando de soldados à toa que gastavam seus dias jogando futebol de sol a sol. Então, repentinamente, foi enviado à Washington University em São Louis para estudar engenharia!

Era um curso de dois anos e se estudava das oito da manhã até as dez da noite. Foi uma dureza nos primeiros tempos, pois cálculo e qualquer coisa que levasse matemática não eram seu forte. Mas no final do curso suas notas melhoraram e conseguiu se formar.

Foi, então, transferido para a infantaria, como scout. No ensino secundário tinha tentado entrar em West Point e fora rejeitado por enxergar mal e agora o exército o fazia primeiro scout!

Na Europa a passeio

Após o treinamento costumeiro em Fort Leonard Wood, Missouri, a tropa foi enviada para San Francisco e depois para as instalações da Marinha em San Diego. Passavam o dia inteiro em simulacros de desembarco nas ilhotas, tentando reproduzir as situações que teriam que enfrentar em ultramar. 

Foi aí que Mort Walker ficou sabendo da existência de um programa para formação de oficiais e se candidatou ao mesmo. O sargento encarregado de sua unidade lhe falou que naquele programa só era aceito pessoal com experiência, o que não era seu caso. Mesmo assim, foi enfrente.

No auditório em que estava acontecendo a seleção, mais de cem rapazes respondiam um teste e Walker descobriu que já tinha feito aquela prova em outra oportunidade. Uma hora mais tarde, era entrevistado por uma banca de seis oficiais e nessa mesma noite embarcava para a escola de formação de oficiais em Fort Benning, Georgia.

Ao sair do curso, com a patente de segundo tenente, tinha duas opções: Ir para Europa por um ano e depois ser dado de baixa ou ficar nos Estados Unidos por três anos. Sem pensá-lo duas vezes, foi para Europa. A viagem num luxuoso transatlântico, batizado como Mariposa, foi um requinte só. Como oficial, tinha direito a todas as regalias inimagináveis, desde fazer as refeições no restaurante de primeira classe até usufruir a companhia de uma das cem enfermeiras bonitonas que viajavam com a tropa. Tudo isso enquanto os pracinhas se apinhavam em seus estreitos camarotes. Estavam tão ocupados vomitando que nem sequer se deram conta quando passaram pelo estreito de Gibraltar. O destino era Itália, onde a guerra, no ano de 45, já estava praticamente ganha.

Ao descer tinha um jipe esperando-o. Colocou a bagagem na parte de trás e o veículo partiu pelas ruas estreitas e retorcidas de Nápoles até seu destino. Quando procurou pelas malas, estas tinham desaparecido! Desse primeiro contato com a guerra, Walker só lamentou a perda de seus livros.

Novamente ele não tinha nada para fazer e seus superiores o colocaram como administrador de um campo de prisioneiros de guerra alemães. Aí tinha que fazer de tudo, desde investigar roubos e estupros até assassinatos. E tinha que fazer enormes relatórios, sempre em cinco cópias, como mandava o figurino.

A volta para os Estados Unidos foi emocionante. Todo mundo chorou ao ver de novo a Estátua da Liberdade, mas a tropa pouca coisa conseguiu ver de Nova Iorque e seguiu diretamente para Chicago, onde foram dados de baixa.

Terminada a guerra, Walker voltou para a Universidade de Missouri tentar terminar o curso de jornalismo. Não era tarefa fácil, pois os professores viam nele um futuro jornalista e ele já decidira que seria autor de comic strips. Freqüentando aulas de literatura, oficinas de redação literária e cursos livres de arte, estava se preparando para a longa estrada que estava por vir. Também era diretor da revista da faculdade, Show Me Magazine.

Em 48, após terminar o curso, foi para Nova Iorque com um estoque de cartuns. Chuck Saxon, editor de arte de This Week, gostou do material e acabou lhe oferecendo uma vaga como editor na Dell Publishing. Assim, do nada, Walker se viu editando cinco revistas de variedades. Nas horas vagas começou a visitar a redação de The Saturday Evening Post e a vender seu material. Mais tarde, foi a vez da revista Collier. Logo estava vendendo mais cartuns que todos seus colegas o que, por sinal, gerou alguns ressentimentos. A desilusão veio quando, mesmo sendo bem sucedido, descobriu que seu faturamento não passava de 8 mil dólares anuais. Foi então que decidiu voltar a fazer tiras em quadrinhos. Nem imaginava o quanto estava certo.

Um cara chamado Spider

Nem o próprio Mort Walker sabe dizê-lo, mas naqueles cartuns que vendia para as revistas aparecia um rapaz desengonçado e cuca fresca que, inspirado fisicamente no amigo Dave Hornaday, não estava nem aí para os problemas do dia a dia.

Mort Walker

Sem perder tempo, Walker desenhou uma dúzia de tiras com aquela personagem como protagonista e as encaminhou a Sylvan Back, então editor do King Features Syndicate. Algumas semanas mais tarde o King Features lhe comunicou que tinham decidido agenciar a tira. Antes, o KFS pediu-lhe fazer algumas mudanças. Uma delas foi trocar o nome do protagonista, pois já existia outro Spider na tira do Big Bem Bolt. Então, sem cerimônia, Walker “emprestou” o sobrenome de um colega de profissão, John Bailey. Foi assim que, no dia 04 de setembro de 1950, Beetle Bailey viu a luz do dia em 12 jornais. 

As primeiras tiras retratavam a personagem como um universitário do Rockview College, mas leitores mais observadores rapidamente encontraram elementos da Universidade de Missouri, por sinal aquela em que o autor estudara. Talvez pelo fato de retratar um mundo, o das fraternidades universitárias, que não era o da maioria dos leitores, a tira não teve o sucesso esperado que, finalmente, veio quando Beetle Bailey se alistou no exército. O que aconteceu depois é história.

O caminho tortuoso até o Quartel Swampy

Alguém falou que o caminho do sucesso está cheio de erros e o caso de Mort Walker é o melhor exemplo dessa asseveração. Trouxe sua cria da universidade à vida na caserna e, sem modificar nem um pouco sua personalidade, deu-lhe o ambiente que necessitava para explodir nas páginas dos jornais. Tudo aquilo que já funcionava na tira, adquiriu maior relevância no meio militar, desde a atitude do Bailey diante da disciplina até o enfoque crítico à burocracia estúpida que é encontrada no exército. 

Pode ter passado despercebido, mas Bailey não era mais um simples rebelde contra o sistema como Sad Sack ou Private Berger, mas alguém que, colhido pela máquina encontrou a forma de sobreviver a ela e, ainda, se divertir um pouco. Desse ponto de vista, Beetle Bailey era um vitorioso. E foi essa característica que o fez cair nas graças dos leitores. Afinal, muitos deles tinham servido no exército ou tinham um parente, namorado ou amigo nos quartéis. Isso era algo que Spider não tinha.

A reação à popularidade da tira por parte do exército, como era de se esperar, foi ridícula. Ao banir a tira de seu jornal, proporcionaram-lhe o gás necessário para nunca mais voltar ao anonimato. O Pentágono ainda fez um livro intitulado “How not to do Things” usando como exemplo as tiras do Bailey!

Com o tempo, as forças armadas passaram a olhar Mort Walker com outros olhos. Deram-lhe medalhas por serviços prestados e foi convidado a recepções no Pentágono e na Casa Branca. Teve até propostas para que a tira virasse porta-voz das forças armadas e Walker recusou. “Para garantir o meu direito de poder dizer o que quiser”, diz ele. Houve um momento, sim, em que ele se sentiu tentado a enviar Bailey para o Vietnã. “Afinal, é para lutar que ele é treinado, mas a guerra em si não tem nada de divertido.” Ainda bem que não o fez, pois teria sido o fim da tira, ao menos como a conhecemos.

Houve, porém, outros solavancos na história da tira, a começar pelas personagens que não deram certo. Sendo uma tira que retratava a vida no quartel, era evidente que boa parte da sua força radicava no elenco e este era variado. Alguns das personagens tiveram vida curta e foram rapidamente parar na lixeira, entre eles um sulista e o cara que comandava as apostas. Afortunadamente, foram poucos.

MW

O elenco que deu certo

Killer (Quindim): Inspirado num colega de Walker no exército que se achava um presente dos deuses para as mulheres. Muitas das gags elaboradas ao redor dele são baseadas em fatos reais.
Zero (Dentinho): É o garoto ingênuo que há em toda unidade do exército. Muitos leitores protestaram porque acharam que Walker estava fazendo humor com os débeis mentais. “Só que Zero não é um retardado”. Por um tempo andou sumido das tiras até que Ernie Bushmiller, o criador de Nancy, falou que sentia falta dele e Zero voltou. Por incrível que pareça, ele é muito popular na Suécia, onde os livros de Beetle Bailey vendem que nem água, perdendo unicamente para o Pato Donald e o Fantasma.
General Amos Halftrack (General Dureza): É o resumo do que de pior pode ser encontrado no exército. Incompetente e ignorado pelos superiores, quando não está jogando golfe ou dando encima de Miss Buxley – o que já gerou queixas das feministas de plantão – se esforça para demonstrar que ele é o manda-chuva do Quartel Swampy, o que já diz tudo sobre sua capacidade de liderança. Para piorar, é dominado por sua esposa.
Plato (Platão): Inspirado em Dick Brown, é o filósofo da turma e uma baforada de intelectualidade no rústico ambiente do Quartel Swampy. Suspeito que é pela sua voz que Mort Walker fala quando quer dizer coisas importantes.
Tenente Fuzz (Escovinha): Em toda unidade militar há sempre alguém como ele, um jovem recém formado que sem ter a experiência do combate chega querendo impor o que aprendeu na escola de oficiais e quebra a cara, não sem antes amargurar a vida dos que estão sob seu comando. É, sem dúvida, fonte de boas piadas.
Tenente Flapp (Mironga): O primeiro personagem negro da tira ganhou vida quando os leitores reclamaram que Walker não estava retratando o exército de forma honesta, sendo que boa parte de seus soldados e oficiais eram de cor. Flapp veio como um militante dos direitos raciais e desde sua primeira aparição mudou a forma de ver o quartel e a própria relação entre os oficiais já que é um deles. Um de seus fãs é o General Collin Powell.
Cookie (Cuca): É o cozinheiro que há em todo quartel, pouco adepto da higiene, tanto pessoal como no trabalho. Sempre com a barba por fazer, uma bituca na boca e vestindo uma camiseta regata encardida, consegue tirar o apetite dos recrutas já de entrada. Famoso pelos bolinhos de carne queimados e intragáveis, de vez em quando acerta ao fazer um bolo de maçã.
Miss Buxley: Ela é, nas palavras do próprio Mort Walker, Marilyn Monroe. E deve ser, pois desde sua primeira aparição fez um estrago danado na tropa. O mais afetado de todos foi, é claro, o General Halftrack, de quem é secretária. Até hoje não sabe datilografar e seu maior interesse, ao menos no começo, era a cor do esmalte com que ia pintar as unhas. Bonita como é já deu muita dor de cabeça a seu criador, que teve que enfrentar a fúria das feministas que não concordavam com o comportamento do general para com a garota. Tamanha era a revolta que houve uma campanha e a tira começou a perder jornais. De fato, Miss Buxley e o humor em torno dela era anacrônico, de uma época em que homens assobiando para uma garota na rua não tinha nada de ofensivo. Mort Walker soube entender que os tempos tinham mudado e, depois de consultar seus filhos, agora também roteiristas da tira, começou a mudar o tratamento dado à garota. Hoje, Miss Buxley é uma personagem importante, com falas espirituosas e bem centradas. O General, por sua vez, foi enviado para fazer um tratamento de “sensibilidade”. Mais recentemente e de maneira discreta, a loira começou a manter um relacionamento amoroso com Beetle Bailey. Ela também esteve no centro de outra briga, agora entre Walker e o próprio King Features Syndicate que se recusou a publicar as tiras em que aparecia com o umbigo ao descoberto, argumentando que isso e nudez eram a mesma coisa. Walker sentou pé e depois de algum tempo ganhou a parada.
Miss Blips: Depois de Miss Buxley não tinha como ter outra garota exuberante e apareceu Miss Blips. Trabalhadora e disciplinada, ela é todo o que a loira não é em todos os sentidos.
Sargento Snorkel (Tainha): Atrevo-me a dizer que, mais que Beetle Bailey, ele é a personagem principal da trama. Inspirado num sargento da vida real, Octavian Savou, atazana a vida dos infelizes recrutas do Quartel Swampy e, em especial, a do Bailey. No início era casado, mas com o tempo a família começou a incomodar e Walker achou por bem deixá-la no limbo, onde está até hoje. Já Snorkel mudou-se de mala e cuia para o Quartel Swampy, para poder estar mais perto de seus “garotos”. São famosas suas brigas com Bailey, nas que se sai bem por sua corpulência, mas depois ambos esquecem e vão tomar uma cerveja juntos, como os camaradas que realmente são. Snorkel tem, também, um relacionamento tenso com o Tenente Fuzz que fornece boas piadas.
Otto (Otto): É o cachorro de Snorkel (Tainha). Sua primeira aparição foi em 17 de julho de 56. Nos primeiros tempos era como qualquer outro cão, só que mais agressivo. Mais tarde se tornou um reflexo do dono, que tem mais coisas em comum com ele que com qualquer um da sua espécie. Foi só em 69 que, seguindo a tradição dos cartunistas, Mort Walker não resistiu e Otto começou a andar em duas patas. Por estranho que pareça, tem dado certo até hoje.
Rockie (Roque): É o verdadeiro rebelde do Quartel, sempre subvertendo a ordem. Dirige o jornalzinho e está constantemente criticando os superiores. Se há uma iniciativa maluca, tenham certeza de que partiu dele. É outra das facetas de Mort Walker.
Martha Halftrack: A esposa do General é em termos simples a doce vingança de todo o quartel, pois trata o general pior do que ele trata seus subalternos. E, muitas vezes, na frente destes.
Completam o elenco o coronel careca e companheiro de golfe do General, o capitão, o capelão e o psiquiatra.

O polivalente Mort Walker

Embora a tira do Beetle Bailey estivesse indo vento em popa, Mort Walker ainda lembrava o quão cerca tinha estado do fracasso e pensou na possibilidade de fazer outra tira, caso a do recruta espertinho afundasse. Conversou com Sylvian Back, editor do King Features Syndicate, para ver se não tinha objeções ao fato de ele, Walker, apresentar essa nova tira para outro syndicate. Back, que não era nenhum otário, lhe respondeu que o KFS agenciaria a tira.

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Como Walker estava bastante ocupado escrevendo e desenhando Beetle Bailey, a idéia era que ele só escreveria os roteiros da tira, deixando para outro artista a tarefa de desenhá-la. Decidira fazer uma tira de família, mas naquela época esse gênero só trazia casais que passavam o tempo inteiro brigando ou lidando com filhos que eram uma peste. Indo na contramão, Mort queria narrar o dia-a-dia de uma família feliz. Com algumas idéias na mão, ele e Back partiram à procura do desenhista ideal para a tarefa. Foi quando o nome de Dick Browne começou a ser cogitado.

Diferentemente do que se pode pensar, naquela época Dick Browne já era um artista no auge. Desenhava uma tira para a revista Boy’s Life e material de propaganda como anúncios das sopas Campbell e Chá Lipton para a agência Johnstone & Cushing. E, o principal, desenhava em qualquer estilo que pedissem! Conseguiram contatá-lo graças a Stan Drake, que tinha o telefone da agência. 

Quando Browne atendeu ao telefone e Back, após se identificar, o convidou para trabalhar para o KFS, a resposta dele foi bater o telefone na sua cara. Só depois de perceber que não era nenhum trote dos colegas da agência foi que Browne ligou para o KFS. Começava assim uma parceria que se não seria a maior entre artistas dos quadrinhos, estava destinada a ser uma das mais divertidas. A primeira tira de Hi and Lois (Zezé no Brasil) foi publicada no dia 18 de outubro de 1954 e se tornou, rapidamente, uma das mais populares do King Features.

É engraçado saber que nem tudo foram flores nesse relacionamento prolongado entre dois artistas talentosos. Walker era fissurado no trabalho enquanto Browne, boa praça de carteirinha, passava o dia inteiro enrolando, tirando uma soneca ou tomando um cafezinho para, depois, varar a noite desenhando. E as diferenças não paravam por aí, pois Mort Walker vivia fazendo piadinhas do parceiro, nem sempre bem humorado. Apesar disso, durante 30 anos eles compartilharam um estúdio, jogaram golfe, tênis de mesa, fizeram churrascos de fim de semana e beberam todas. Mesmo depois de que Browne estourou com o sucesso de Hagar o Horrível continuaram fazendo Hi and Lois. Isso até passarem o bastão para os filhos, agora também cartunistas. 

Além de Beetle Bailey e Hi and Lois, Walker ainda fez outras tiras. Uma delas, Mrs Flitz’s Flats, tratava da vida numa pensão e foi criada para seu assistente Frank Roberge. Publicada entre 1957 e 1972, foi cancelada com a morte do desenhista, que também fazia os roteiros. Chegou a ser publicada em 300 jornais.

Outra tira foi Sam’Strip, feita em parceria com seu assistente Jerry Dumas. A idéia por trás da mesma era satirizar outras personagens de comic strips e o King Features negou-se, no início, a agenciá-la com a justificativa de que não tinham autorização para isso. Walker argumentou que não era necessário ter autorização para fazer uma paródia e foi enfrente. Desde o primeiro dia desfilaram pela tira personagens famosos como Krazy Kat, Little Nemo, Popeye e outros. As tiradas de metalinguagem fizeram da tira a preferida dos cartunistas. 

Mas a circulação da mesma era baixa e quando as vendas despencaram foi cancelada. Dez anos mais tarde, o representante de outro syndicate, o NEA, procurou Walter e Dumas com a proposta de reviver a tira. Quando o KFS soube da oferta, negou-se a deixá-los trabalhar para outro syndicate e aceitou que retomassem a mesma, só que agora sob o nome de Sam and Silo. A nova tira está aí há 27 anos. Não é nenhum sucesso de público, mas dá a Jerry Dumas a oportunidade de desenhar vizinhanças adoráveis com árvores estilizadas. E, de passo, tornou o próprio Dumas uma celebridade na sua cidade natal, Greenwich.

Teve ainda outra tira, Boner’s Arch, que Walker assinou com seu primeiro nome, Addison. A mesma foi publicada por trinta anos, até seu cancelamento em 2001.

A gangue de Connecticut

Há muito tempo, praticamente desde que se tornou um artista reconhecido, Mort Walker trabalha com assistentes. Os primeiros foram Fred Rhodes e Frank Roberge, mas Jerry Dumas é, de longe, seu maior colaborador. Eles estão juntos há 52 anos e nunca houve uma reclamação.

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Depois vieram os filhos, Brian, Greg e Neal que acabaram entrando no negócio. Brian e Greg escrevem as gags para as tiras do Beetle Bailey. Greg também é arte-finalista das tiras que o próprio Mort ainda faz questão de desenhar. Já Neal toma conta do material que é editado no exterior, principalmente na Suécia e Holanda. Outro que se juntou à patota é Bill Janocha. Há mais de 20 anos ele faz arte-final para boa parte dos projetos que Mort Walker desenvolve.

O método de trabalho é, no mínimo, curioso. Uma vez por mês, Mort se reúne com Jerry Dumas, Greg e Brian. Cada um traz na bagagem 30 gags, o que dá 120 gags no total, para serem avaliadas pelo grupo. A reunião acontece no maior silêncio. Assim, as tiras muito boas são classificadas como tipo 1. São as que estão prontas para serem desenhadas e entintadas. As que estão boas, mas merecem uma revisão ganham classificação 2 e são levadas de volta para serem melhoradas e analisadas numa próxima reunião. Dependendo da falta de qualidade ou do conteúdo impróprio, podem ganhar outra classificação, bem maior. Muitas delas são reaproveitadas nas publicações lançadas no exterior, onde leitores não ligam para as exigências moralistas dos jornais norte-americanos.

Mesmo com as tiras já classificadas, a reunião prossegue. Agora todo mundo opina sobre o texto ou aspectos do desenho. O método funciona, pois até tiras de nível 1 conseguem ser melhoradas. Muitas vezes até aquelas gags que não tinham sido aprovadas numa primeira análise são reaproveitadas.

Esse método era, também, aplicado às tiras de Hi and Lois, mas após a morte de Dick Browne as mesmas ficaram sob a responsabilidade de seus filhos. É um acordo de cavalheiros que tem sido cumprido sem maiores problemas, já que Chance e Chris Browne são amigos de longa data dos filhos de Mort Walker. Só para esclarecimentos, Chris continua fazendo, sozinho, as tiras do Hagar, enquanto Chance desenha Hi and Lois. É para estas tiras que Greg e Brian fazem as gags num esquema similar ao que foi descrito para Beetle Bailey. Por consenso, Mort Walker não participa das tiras de Hi and Lois. O motivo? Pode parecer pueril, mas visto que os dias em que a casa de Mort estava cheia de moleques peraltas já ficaram para trás há muito tempo, é evidente que ele não tem mais a vivência necessária para escrever material para uma tira de família. O mesmo está acontecendo agora que os filhos de Greg, Brian e Chance estão chegando à fase adulta.

Com um universo tão amplo como o do Quartel Swampy, Mort Walker tem estabelecido uma rotina de trabalho para não se complicar. Nas segundas feiras a tira é sobre Beetle Bailey e o sargento. As terças feiras são destinadas às personagens secundárias. Na quarta feira, a protagonista da tira é Miss Buxley (Dona Tetê) e nos sábados é a vez do general Dureza e sua esposa.

Com tantos anos de fazer a tira, nada mais natural que Mort Walker achar que era dono da mesma. De fato, ele criou a situação, assim como as personagens, há 60 anos e depois a apresentou ao KFS. Nessas circunstâncias, se ele morresse, o syndicate poderia procurar outro artista para continuá-la. É o que acontece com a maioria das tiras para jornal, tipo Popeye, Betty Boop ou Gasoline Alley. Mas, em 1980, surpreendentemente, o KFS enviou-lhe para assinar um contrato em que ficava claro que o King Features era o dono de Beetle Bailey e Walker um mero artista contratado para desenhá-lo.

Mort Walker não só não o assinou como comunicou ao syndicate que não assinaria. Percebendo que tinha ido longe demais, a diretoria do KFS recuou e ofereceu-lhe um novo contrato em que ficava claro que Beetle Bailey era propriedade de Walker, mas que ele se comprometia a que o KFS continuasse agenciando a tira durante os próximos quinze anos. E como prova de que tudo estava bem ele ainda recebeu um bônus de um milhão de dólares!

Mais que um cartunista

Mesmo sendo um artista altamente produtivo, Walker sempre encontrou tempo para outros projetos. Na época em que ainda vendia seu trabalho pelo correio, conheceu o cartunista McGowan Miller, membro da National Cartoonists Society. Foi ele quem o convidou para ir a uma reunião da associação que, mesmo com aquele nome pomposo, estava composta de apenas uns quantos cartunistas. As reuniões aconteciam num bar e o pessoal aproveitava para beber enquanto discutiam a pauta e contavam piadas. Depois de umas quantas participações, Walker foi convidado a fazer parte da diretoria. Isso foi na época em que Walt Kelly era o presidente, de 1954 a 1956. Entre homens maduros como Jack Tippit e os célebres Milton Caniff, Walter Kelly e Rube Goldberg, aquele rapaz de 26 anos devia parecer um tanto pretensioso. E, mesmo assim, ele foi convidado a assumir a presidência da NCS, entre 1959 e 1960. O primeiro ato de sua gestão foi procurar um lugar para reuniões mais apropriado!

O outro projeto que Walker abraçou foi o do Cartoon Art Museum e nele levou praticamente trinta anos, com todas as dores de cabeça que foi viabilizá-lo. A idéia de criar um espaço para originais de histórias em quadrinhos, tiras e cartuns surgiu quando Walker percebeu que não existia esse tipo de lugar. É dizer, tinha museus de arte clássica, de artes modernas, de qualquer tipo de arte, menos de cartuns, a arte mais popular de todas!

O primeiro passo foi procurar financiamento ou contribuições para montar o espaço. Bateu nas portas da IBM e do Reader’s Digest, mas saiu de mãos abanando. Finalmente, encontrou uma velha mansão em Greenwich. Os herdeiros não sabiam que fazer com ela e ficaram contentes quando Mort Walker lhes disse que queria alugá-la para um museu.

Reformar aquele prédio foi um trabalho dos diabos, pois quase nada, desde as privadas até as instalações elétricas, funcionava adequadamente. Após conseguir a autorização, Brian e seus amigos, a maioria deles com pretensões artísticas, reformaram o prédio.

A inauguração foi um sucesso. O espaço era agradável, com direito a lanchonete, e ficava a um quarteirão da estação do trem, numa vizinhança calma. A programação intensa, com direito a exibições dos trabalhos de Milton Caniff, Schulz e outros grandes do cartum empolgou a comunidade e as escolas não paravam de visitar o local. Foi então que o dono pediu o espaço de volta.
A seguinte parada foi em Westchester. Era um castelo que tinha sido construído pelo mesmo homem que fizera as fundações para a Estátua da Liberdade. O lugar saiu pela bagatela de 70 mil dólares. Novamente a “equipe” de Brian entrou em ação. O prédio abrigou o museu durante os seguintes quinze anos. Depois a instituição acabou se mudando para Palm Beach na Florida, mas a esta altura o próprio museu tinha se convertido num elefante branco que Walker não tinha mais possibilidade de carregar sozinho. Procurou parceiros ou alternativas que não lhe consumissem mais dinheiro do que já tinha torrado no empreendimento até que, recentemente todo o patrimônio acumulado nele ficou sob o cuidado do Cartoon Library and Museum da Ohio State University, onde está até hoje.

MW

Nem de longe o fim da linha

Aos 87 anos e com uma carreira tão prolífica, poderia se pensar que Mort Walker já fez tudo o que tinha que fazer. Não é assim e esse velho afável, um dos maiores cartunistas de todos os tempos, ainda arruma tempo para projetos mais pessoais. Um deles é a revista The Best of Times, em que publica tiras de personagens do KFS que não são mais publicadas nos jornais. Ele mesmo arruma patrocínios, diagrama e vai enfrente.

Quando perguntado sobre o futuro das tiras para jornal num período de crise como o atual em que grandes jornais e até grupos de mídia como The Tribune Media Company estão fechando suas portas, ele é categórico. Sempre haverá espaço, mesmo que menor, para as tiras em quadrinhos. Afinal, elas são o que de melhor os jornais trazem. E isso, vindo desse velhinho rechonchudo e bom piadista, ele mesmo uma lenda viva da comic strip, é o que mais de auspicioso poderíamos ouvir.


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