John Stanley

O homem que entendia de crianças

Por Mário Latino

No panteão das histórias em quadrinhos deve existir um pedestal para John Stanley, bem ao lado de Carl Barks, Fred Henbeck, George Herriman, Windsor Mc Cay e C.C. Beck. O curioso é que enquanto há muita bibliografia sobre os últimos pouco há sobre Stanley. O que de fato é uma injustiça para aquele que por um tempo foi considerado um dos melhores roteiristas de histórias em quadrinhos. Explicações devem haver para esse fato e uma delas, talvez seja, a de que na maior parte de sua carreira escreveu histórias de personagens que não lhe pertenciam, aquilo que de forma depreciativa poderiamos dizer uma pena de aluguel.

Stanley nasceu em março de 1914 e não há muitos dados sobre ele e sua infância. Sabe-se que era o segundo de cinco irmãos e que na adolescência ganhou uma bolsa de estudos para a Textile High School em Chelsea, Manhattan. Lá, como depois diria Gill Fox (que mais tarde seria capista das revistas da Quality Comics) para a revista Alter Ego, ele exibiria aos 16 anos um talento que muitos profissionais da área não tinham.

Sabe-se que na mesma época frequentou a New York School of Design. Terminados os estudos ele encontrou trabalho no estúdio de Max Fleischer, entintando as cenas de preto ou fazendo os desenhos das cenas secundárias. Em 1935, Stanley foi trabalhar com Hal Horne na Mickey Mouse Magazine e, mais tarde com Kay Kamen fazendo marketing para Disney. E, aproveitando o tempo livre, começou a vender gags e cartuns para revistas, entre elas o New Yorker.

Foi nessa época que começou a trabalhar como freelancer para a Western Publishing, sob o comando do editor Oskar Lebeck. A Western fazia nesse tempo o material para as revistas da Dell Comics, o que significava adaptar ao meio dos quadrinhos personagens que já eram famosos no cinema e na animação. Foi aí que Carl Barks moldou o belicoso Donald, transformando-o numa personagem multifacetada e com os problemas do homem comum. Da mesma forma, Stanley em seu primeiro trabalho para a Dell transformou o Picapau (Woody Woodpecker no original) num indivíduo bem humorado e sarcástico. Mais tarde ele trabalhou em Andy Panda e Bugs Bunny (Pernalonga) assim como em duas criações suas, Peterkin Pottle e Jigg and Mooche, que não deram muita sorte.

A sorte de Stanley deu uma virada em 1945 quando a cartunista Marge Henderson Buell permitiu que a Western fizesse histórias de sua personagem Little Lulu. Lulu era até então um cartum publicado, com muito sucesso, na revista Saturday Evening Post. Anos depois, com sua natural modéstia, Stanley diria que “aquele encargo recaiu sobre mim como poderia ter sido designado a Dan Noonan, Walt Kelly ou qualquer outro. Deu a sorte que naquele momento eu era o único disponível”. Margie e ele se encontraram uma única vez para conversar sobre a adaptação de Lulu para os quadrinhos e, embora ela acompanhasse depois o que Stanley estava fazendo, nunca mais fariam contato. A primeira revista Lulu Four Color, publicada nesse mesmo ano, foi roteirizada e inteiramente desenhada por Stanley. Foi só em 1948 que a série regular viu as bancas, no primeiro ano em publicação bi-mestral e depois em revista mensal. Para então os leiautes eram de Charles Hedinger e a arte-final de Irving Tripp. Mais tarde Hedinger sairia e Tripp ficaria com todo o trabalho. Stanley fazia os roteiros, na verdade leiautes sobre os que Tripp trabalhava, e as capas. Houve uma única vez em que, possivelmente pela agenda apertada, Stanley faria roteiro e desenhos e isso aconteceu na revista Little Lulu # 31 de 1951.

Sob o comando de Stanley a Luluzinha sofreu transformações importantes, começando pelo elenco de moleques encapetados. A eterna rivalidade de gênero atingiu seu ápice com o cube de Bolinha (Tubby no original), aquele em “que meninas não entram” e muitas das aventuras mostram os esforços de Luluzinha e Aninha para dar o troco nos meninos ou conseguir entrar no clube, com resultados para lá de hilariantes. Stanley ainda criou para os moleques o dia em “que eles não dirigiam a palavra às meninas”, se não estou errado na primeira segunda feira do mês, e a pirralhada levava isso tão a sério que não falavam nem com as suas própias mães!

Só que as histórias não se limitavam a isso. Tínhamos também aqueles momentos em que Bolinha se transformava no detetive conhecido pela alcunha do Aranha para resolver casos em situações em que Luluzinha estava enrascada.O engraçado era que o detetive gorduchinho sempre encasquetava que o pai de Luluzina (senhor Moppet no original) era o culpado e, por incrível que pareça ele sempre estava certo!
Outras vezes as histórias apresentavam Bolinha e sua turma enfrentando os meninos cascagrossa da turma da Zona Norte e não eram raras as vezes que o fiel da balança se inclinava a seu favor graças à ajuda da Luluzinha!

E ainda tínhamos as histórias em que Luluzinha para entreter ao capeta de Alvinho lhe contava histórias da “triste menininha”, uma versão dela mesma que enfrentava a rudeza do mundo e muitas vezes as maldades da bruxa Alcéia e de sua sobrinha Meméia.
Ou a rivalidade de Bolinha com Plinio, o garoto rico e esnobe, pelo amor da interesseira Glorinha. Pode ser curioso, mas analisando a obra de Stanley fica evidente que sua personagem favorita não é a Little Lulu, embora a ela estejam destinadas boas histórias, talvez as melhores. Esse privilégio recai em Tubby, até então uma personagem tipicamente secundária nos cartuns de Margie Henderson. E no gordinho coadjuvante que ele joga seus melhores recursos narrativos, dotando-o de todas as características e defeitos que fizeram dele um garoto de cómics realmente adorável.

Ao parecer, Stanley conseguiu elaborar uma série de situações ‘típicas’ e à maneira de Herriman brincar com elas de tal maneira que no final eram histórias diferentes. Este recurso, típico de roteiristas talentosos, também era utilizado por Carl Barks, Shulz e Dirks entre outros. Para o ano de 1951, o domínio da cena que John Stanley tinha era tão bom que as histórias pareciam surgir sem dificuldade aparente. Foram exatamente estos anos o auge da criatividade de Stanley chegando a escrever os roteiros de 12 revistas mensais da Little Lulu (o número de páginas ia de 36 a 52 páginas). Além disso se encarregava de escrever e desenhar as histórias para a revista trimestral de Tubby que só em 1955 passaria a ser desenhada por Lloyd White. E, por se fosse pouco, entre 1955 e 1958, ele ainda produziu as histórias para dois especiais por ano de Luluzinha e sua turma com 100 páginas cada um.

Tal esforço criativo tinha um preço e, no caso de Stanley, que sofria de depressão numa época em que não existia o Prozac, a solução foi encontrada no álcool. Além disso, ele tinha que lidar com a frustração de não poder assinar seu trabalho. Isto para alguém que trabalhava praticamente sozinho (os contatos com Tripp foram contados) deve ter contaminado sua maneira de ver os comics.
Esta relação de amor e ódio é visível em suas histórias da Luluzinha a partir de 1955 e é possível observar que as personagens vão adquirindo tons quase histéricos e o humor das histórias é menos inocente, mais baseado na superação de situações adversas.

A última revista da Luluzinha com roteiros de Stanley foi publicada em 1959. Nesse mesmo ano ele começou a escrever os roteiros de Nancy and Sluggo (Periquita) da própria Dell Comics e permaneceu no título do # 162 ao # 185. Embora a passagem dele por esse título tenha sido curta criou para o mesmo personagens tão importantes como Oona Goosepimple e Mr. Mc Onion, até hoje cults entre seus leitores.

Embora o objeto deste artigo seja enfatizar a trajetória de John Stanley como roteirista de Little Lulu, não é demais observar que sua contribuição para as histórias em quadrinhos não parou por aí. Em 1951, quando ainda escrevia as histórias da Luluzinha, roteirizou histórias de Krazy Kat num intento de revitalizar a clássica tira já para então à míngua. As histórias de Krazy Kat idealizadas por Stanley pouco ou nada lembravam daqueles imortalizados por Herriman. Ele ainda retomaría esse esforço duas vezes, sem resultado, entre 1953 e 1956.

Outro trabalho de que ele participou foi em uma adaptação para os quadrinhos do Little King, a célebre pantomina de Otto Soglow, que foi publicada em 3 episódios.
Em 1962, quando o acordo entre a Western Publishing e a Dell Comics terminou, Stanley escolheu ficar na Dell. Seus últimos trabalhos para os quadrinhos foram para a Golden Key em 1971.

Depois de abandonar os quadrinhos, John Stanley trabalhou como diretor de uma empresa de serigrafia em New York. Ao mesmo tempo, fazia cartuns para uma editora de livros religiosos.
Foi então que os fãs Don Phelps e Robert Overstreet encontraram sua pista e o resgataram do limbo. Sua primeira aparição em público foi na Comic Con de Boston em 1976. Stanley também foi o convidado de honra na Comic Art Convention de 1977 mas se recusou a participar da Sa Diego Comic Book convention de 1980.

Na última etapa de sua vida, Stanley ainda voltou à personagem que lhe deu fama, fazendo ilustrações por encomenda, na verdade reproduções de algumas capas clássicas de Little Lulu e Tubby.
Morreu em 11 de novembro de 1993 de câncer no esôfago. Sua esposa tinha morrido um ano antes. Deixou dois filhos.

Apesar de hoje ser pouco lembrado pelos leitores, o trabalho de John Stanley é de uma qualidade impressionante até para padrões altamente exigentes. Little Lulu 51 foi considerada em 2000 um dos melhores quadrinhos de todos os tempos na avaliação do Comics Journal. E 4 histórias da Luluzinha fizeram parte da Smithsonian Book of Comic Book de 1981, editada por Martin Williams e Michael Barrier.

Com o tempo, talvez numa manifestação tardia, começaram a florescer clubes de fãs do trabalho de Stanley. Um deles se agrupou arredor do fanzine criado por John Merrill, The Stanley Steamer, que durou de 1982 a 1992.
Não queria terminar este artigo sem enfatizar a importância que John Stanley teve para milhares de crianças que, como eu, cresceram acompanhando as aventuras da turma da Luluzinha e Bolinha. Uma turma que acabou influenciando todas as histórias em quadrinhos sobre crianças que vieram depois, Aí estão Charlie Brown, Pimentinha, Mafalda e a Turma da Mônica que não me deixam mentir.

 

 


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