Gil Kane

Muitos não sabem, mas o trabalho deste desenhista trouxe nova vida à indústria dos comics.

Mário Latino

Para a atual geração de leitores de histórias em quadrinhos – acostumados a reverenciar os trabalhos de Tod McFarlane e Marc Silvestri – o nome de Gil Kane não deve significar muita coisa. Mas deveria, porque Kane, cujo verdadeiro nome era Eli Katz, marcou a história dos quadrinhos e, principalmente, o gênero dos super-heróis, com tal força que, me atrevo a dizer, sem ele a história da DC, da Marvel e até da própria Image teria sido completamente diferente.

Gil Kane começou a trabalhar com quadrinhos no ano de 1942, aos 16 anos. Já nessa época, nutria uma exagerada paixão pelos pulps, que com os anos se estenderia à literatura clássica e à filosofia.

Pelo que se sabe, seus primeiros trabalhos foram realizados em ritmo de encomenda para a MLJ Editora, cujo chefe era o lendário Harry Shorten. Oito meses mais tarde, Kane foi trabalhar como assistente de Joe Simon, na DC. Nessa época assinava suas pranchas com o nome de Eli Katz, Eli Kane, Gil Stack ou Al Kame, dependendo das circunstâncias. Aos 17 anos já conhecia artistas do nível de Joe Kubert, Charles Biro, Bob Montana, Carmine Infantino, Sparling e Al Plastino

Na DC, Gil Kane trabalhou por algum tempo com Joe Simon e, às vezes, com Jack Kirby. Quando estes foram convocados pelas forças armadas, a DC passou um roteiro de Newsboy Legion para que ele desenhasse, mas parece que não agradou e, da noite para o dia, Kane viu-se no olho da rua. Após esta infeliz experiência, Kane foi trabalhar por um breve período com Mac Raboy no título Captain Marvel Junior. Mais tarde, ele foi parar na Continental Comics, onde dividiu espaço com Infantino e Harvey Kurtzman, antes de ser convocado pelo exército, no verão de 44.

Nos 18 meses que Kane esteve no exército, até ser dado de baixa em dezembro de 1945, a indústria dos comics entrou em crise de forma que, quando voltou, não havia mais trabalho para ele. Utilizando antigos contatos, arrumou trabalho na DC, para a qual desenhou o western Hopalong Cassidy até 1947.

A reviravolta na carreira de Gil Kane veio em 1959, quando o roteirista John Broome recebeu a encomenda de resgatar um dos heróis da Era de Ouro dos Comics, The Green Lantern. Broome convidou Kane para trabalhar com ele como desenhista e, graças a seu domínio da perspectiva, da anatomia e da narrativa, aquele primeiro número das aventuras do gladiador esmeralda converteu-se num marco das HQ. Se a contribuição do artista ficasse por aí, ainda assim ele teria assegurado um lugar entre os mestres dos quadrinhos. Mas Kane ainda ficaria mais célebre pelo seu trabalho com The Atom para a mesma DC. A estas alturas qualquer um se sentiria satisfeito, mas Gil Kane tinha uma visão bem crítica do que os quadrinhos, como manifestação cultural, poderiam vir a ser e não estava disposto a aceitar as limitações que a indústria impunha. Decidido a romper com os esquemas que reprimiam sua capacidade criativa enveredou pelo caminho das publicações independentes. A primeira dessas tentativas veio com a série T.H.U.N.D.E.R. agents que publicou pela desconhecida Tower Comics. Depois veio His Name is...Savage que foi produzida pela Cable. Antecipando-se em mais de 20 anos ao boom do quadrinho em preto e branco, Savage incorporava os elementos estéticos dos pulps, dando aos quadrinhos um aspecto mais adulto. Ambos os trabalhos, boicotados pelas grandes editoras e esquecidos pelas distribuidoras, não chegaram ao segundo número. Após sair da DC por diferenças com Infantino –que agora era o editor - Kane foi parar na concorrente Marvel. Era o ano de 1970.

Nos anos seguintes, Kane tornou-se o mais prolífico artista da Marvel, depois de Jack Kirby.

Um cálculo superficial do seu trabalho dessa época aponta que ele chegou a fazer 900 capas e que desenhou, praticamente, todas as personagens da editora.

O início da carreira de Gil Kane na Marvel coincidiu com a decisão de Stan Lee de deixar os roteiros em mãos de outros escritores. Kane foi, de cara, designado para o título mais importante da editora, The Amazing Spiderman. Trabalhando em equipe com o roteirista Roy Thomas, o desenhista estabeleceu uma das melhores parcerias que a história do ‘comic’ moderno tenha registro, parceria que deu lugar a histórias memoráveis como aquela em que o homem-aranha transforma-se num monstro com seis braços ou a polêmica “morte de Gwen Stacy”. Numa entrevista concedida em 1996, Kane reconheceu aquele período como “o mais feliz de toda minha vida”.

Mesmo trabalhando para a Marvel, Gil Kane continuava procurando novos caminhos para a arte dos quadrinhos. Em 1971, ele assinou contrato com Bantam Books, pelo qual se comprometia a produzir, em parceria com o saudoso Archie Goodwin, oito novelas gráficas de um épico da ficção científica que se chamou Blackmark. A série misturava elementos do gênero capa e espada com a fantasia de Edgar Rice Burroughs. Da mesma forma que com Savage, Blackmark teve problemas de distribuição. A série foi cancelada depois do fracasso do primeiro número. Kane chegou a terminar um segundo volume, que acabaria sendo publicado pela Marvel.

Coincidindo com o lançamento de Blackmark, Roy Thomas iniciava a adaptação para os quadrinhos dos romances de Robert Howard, com Conan, o Bárbaro, como protagonista. Kane foi trabalhar com Thomas por dezessete números.

Em 1977, ele e o escritor Ron Goulart criaram, para os syndicates, a tira de ficção científica Starhawks. Numa época em que a tira de aventuras não tinha mais espaço nos jornais, eles conseguiram a façanha de publicá-la por quase sete anos!

No início dos anos 80, Gil Kane estava trabalhando num ritmo frenético para a DC e Marvel, além de desenhar Starhawks para os jornais. Os fracassos com Cable, Bantam e o ínfimo pagamento do syndicate faziam que Kane estivesse sempre à beira da falência. Para piorar, teve que pagar os custos dum divórcio complicado. Lembrando esses dias difíceis, ele diz que “não podia me dar ao luxo de ficar dois dias sem trabalhar”.

Foi, então, que surgiu a oportunidade de trabalhar com desenho animado. Em 1984, mudou-se para Califórnia, onde fazia storyboards para Marvel Productions. Depois passou a desenvolver projetos de animação para ABC. Essa experiência durou cinco anos. “Foi muito gratificante. Por primeira vez em anos, estava ganhando dinheiro de verdade”, declararia num entrevista em 1998.

Trabalhar com animação lhe permitia fugir das limitações que a página do ‘comic book’ impunha, deixando à solta a imaginação e a capacidade criativa. Mas aí Kane acabou descobrindo que trabalhar com animação podia ser uma experiência frustrante. Para começo de conversa, todo o material produzido estava destinado a o público infantil, bem diferente daquele que ele tentava atingir com seus quadrinhos! Para piorar as coisas, ninguém parecia interessado em escutar o que ele tinha a dizer.

Para final dos anos 80, boa parte dos projetos da ABC tinham ido para o brejo e Kane voltou para os quadrinhos. Mas, o mundo que ele tinha abandonado seis anos atrás estava completamente mudado.

“Entrei em contato com a DC e senti certa resistência deles para me dar trabalho de novo. Eu não entendia os motivos...Foi aí que percebi que todo mundo estava desenhando no estilo ‘mangá’, e que Jim Lee, Liefeld e McFarlane – e um bocado de imitadores – estavam ocupando todos os espaços. Meu estilo não tinha nada a ver com a nova estética predominante. Os novos super-heróis, sombrios e armados até os dentes, pesavam 50 quilos a mais e eram, pelo menos, duas cabeças mais altos que os que eu estava desenhando!”

Em 1990, Gil Kane, novamente em parceria com Thomas, fez a adaptação da saga germânica “The Nibelungs”. A qualidade do trabalho rendeu uma nota favorável no The New York Times. Kane tinha dado a volta por cima.

Foi enquanto terminava esse trabalho que Kane teve seu primeiro encontro com o câncer. Para combater o linfoma, se submetiu à quimioterapia e radiações. Como resultado do tratamento, seu coração quase entrou em colapso. Foi necessária uma operação de coração aberto. Kane que, sempre fora um homem vigoroso, era agora uma sombra dele mesmo.

Mesmo doente, Kane não parou de trabalhar. Era como se, consciente do pouco tempo de vida que ainda tinha, tentara ainda desenhar aquela que ele –crítico ferrenho - consideraria sua obra prima.

Eli Katz ou Gil Kane – como seus admiradores o conheciam – morreu no 31 de janeiro de 2000. Tinha 73 anos de idade.


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