Dick Browne

Um viking chamado Dick Browne

Não é segredo que Dick Browne é o criador da tira mais popular do mundo, Hagar the Horrível. Tampouco é segredo que antes de criar a personagem que o lançou ao panteão dos deuses da prancheta, ele em parceria com Mort Walker - o criador de Beetle Bailey-, fizeram Hi & Lois, outra tira de notável sucesso. Poderíamos ser induzidos a pensar, então, que se não fosse por Walker, Dick Browne teria demorado muito mais em atingir o sucesso. E aí estaríamos redondamente enganados, pois Browne antes daquela que foi uma das parcerias mais bem sucedidas das comic strips já era um artista reconhecido por seus próprios méritos.

Nascido como Richard Arthur Allan Browne no ano de 1917, ele passou boa parte de sua vida na rua 42 em NY. Era aí onde seus avós tinham montado um mercadinho e onde seus pais cresceram também. Não deviam ser tempos fáceis já que o país se encontrava em guerra no outro lado do mundo.
Pelo que se sabe, Dick nunca recebeu nenhum tipo de treinamento artístico, como era comum naqueles tempos quando um garoto mostrava talento para o desenho. Aos 16 anos ele foi trabalhar no New York Journal como mensageiro no departamento de notícias. Era o roteiro clássico para quem entrava num jornal. Se o aspirante mostrasse talento poderia depois subir na hierarquia e tentar, como a grande maioria, ser redator e até repórter. O salário era de oito dólares por semana.

Enquanto cumpria seus deveres, nas horas vagas Dick fazia caricaturas de seus colegas com relativo sucesso. Percebendo essas habilidades o chefe de redação o enviou ao fórum criminal para desenhar o que estava acontecendo nos julgamentos. Foi assim que ele cobriu o julgamento e condenação do gângster Lucky Luciano.
Nessa época um rapaz de sobrenome Meringorf o procurou com a proposta de uma tira sobre um garoto judeu refugiado. Browne fazia a arte e Meringorf escrevia o roteiro e letreirava. Foi sua primeira incursão no campo da comic strip que atendia pelo nome de Muttle the Gonif. Depois com algumas tiras prontas começaram a procurar os jornais do bairro para tentar sua publicação. Um deles, Forward topou publicá-la pagando 5 dólares por semana que teriam que rachar entre os dois autores. Como o retorno era pouco e nenhum outro jornal topou publicar a tira, desistiram da empreitada.
Depois de certo tempo algum chefe do New York Journal deve ter percebido que Browne não tinha o sangue nos olhos, qualidade indispensável para ser um bom repórter. De temperamento avoado e sempre nas nuvens, o jovem Brown era incapaz de decorar um número telefônico, um endereço. Por isso foi transferido para o departamento de arte, como ele mesmo admitiu numa entrevista concedida a Rick Marschall no começo de 1983.

Na Europa a Segunda Guerra Mundial estava para começar e alguém no New York Journal reparou que não tinham mapas adequados para as reportagens que forçosamente viriam. A solução foi colocar o recém-chegado para cumprir essa tarefa. Subitamente ele estava até as tampas de serviço.
Foi então quando um de seus chefes, Jack Caldwell, saiu e foi para a Newsweek. Caldwell devia estar impressionado com o serviço que ele estava fazendo porque lhe fez uma boa proposta de emprego e, assim, Dick Browne transferiu-se para a coqueluche das revistas semanais da época. O salário era de 75 dólares por semana, uma fortuna em aqueles tempos difíceis. Aproveitando a bonança, Browne pediu sua namorada, Joan Kelly, em casamento.

Na Newsweek além dos mapas, ele fazia ilustrações de equipamentos de guerra, de movimento de tropas. Foi então que recebeu a convocação para o serviço militar. Locado no Corpo de Engenheiros continuou fazendo mapas militares até o fim do conflito. Nesse período voltou a incursionar nos quadrinhos na tira Ginny Jeep que aparecia no jornal da Força Aérea, com relativo sucesso.
De volta à vida civil em 1946, Dick Browne tentou voltar para a Newsweek, mas aquele papinho de que convocado quando voltasse, se voltasse, teria seu emprego de volta era balela. Após bater em várias portas, nas do Kig Features Syndicate entre elas, Browne saiu de mãos abanando. Não que seu traço fosse ruim, era que ele não trazia a recomendação de alguém importante na área, era um desconhecido. Foi quando alguém lhe recomendou bater na porta da agência de publicidade Johnstone & Cushing.

Quando Dick Browne chegou um dos sócios, Tom Johnstone, estava tocando o piano. Sua assistente, Betty Rhinehardt o interrompeu. “Na recepção há um rapaz procurando uma vaga”. Johnstone perguntou se o recém-chegado sabia tocar piano e Betty voltou para a recepção e perguntou a Dick se sabia tocar piano, este respondeu que não. Johnstone então o despachou sem cerimônia. Foi quando estava saindo que o outro sócio, Jack Cushing o chamou para conversar. “Posso ver seus desenhos?” e ele não tinha trazido um sequer! Desalentado, voltou para casa, para Joan. Era sexta feira e o sol estava se pondo quando chegou. Então o telefone tocou. Era alguém chamado Al Stenzel, da Johnstone & Cushing, que precisava falar urgentemente com ele. “Pode vir para o escritório agora?” Browne, mesmo com o orçamento limitado, pegou um táxi. O motivo para aquela conversa era que um dos artistas da casa tinha saído de férias e eles precisavam entregar um portfólio sobre abajures para a segunda feira. Dick Browne, que não sabia nada sobre abajures nem sobre como se apresentava um produto, passou o fim de semana desenhando abajures de todos os tipos, mais de mil. Na segunda feira, bem de manhã, ele estava à porta da Johnstone & Cushing para entregar a encomenda. Devem ter gostado porque lhe falaram que tinham mais trabalho para ele. E fizeram questão de pagar imediatamente. A soma, 300 dólares, era praticamente o que ele ganharia num ano! Sua seguinte encomenda foi um trabalho publicitário para a Ford Motor Co., uma ilustração da planta de Rouge River com os vinte modelos dos carros produzidos pela montadora alinhados e se perdendo no horizonte. Depois ele pegou a conta da Mennen, uma das mais importantes. Os tempos difíceis tinham acabado.

Depois vieram outras encomendas. A equipe de ilustradores, 20 ao total, era muito competitiva e ao mesmo tempo tinha estabelecido um ambiente divertido. Estavam aí, prancheta com prancheta, desenhistas do calibre de Craig Flessel, Rex Wexler, Leonard Starr e Stan Drake só para começar. E mesmo entre eles, Dick Browne ganhou fama de gênio. Contava-se, evidentemente como anedota, que ele fazia os rascunhos na prancheta enquanto bebia litros de café e jogava conversa fora sem olhar nem um momento para aquilo que estava desenhando. Foi nessa época que Stan Drake reparou que ele, mesmo num estilo quase realista, desenhava suas personagens com pés grandes. Era o começo do estilo “big foot”, pelo que seria mais conhecido e que teve depois adeptos como Mort Walker e Jerry Dumas, entre outros.
“Foi minha época mais divertida” lembraria anos mais tarde Browne. O ambiente era tão descontraído que ao lado das pranchetas estavam várias mesas de xadrez em que os desenhistas jogavam em campeonatos intermináveis, mesmo no horário de trabalho!
Por cinco anos, Browne trabalhou na Johnstone& Cushing. Para eles desenhou, entre outras coisas, o logotipo de Chiquita Banana, a antiga United Fruit Company e o novo design das latas de sopa Campbell. Também, em parceria com Al Stenzel, criou a história em quadrinhos The Tracy Twins para a revista Boy’ Life.

Então apareceram Mort Walker, o criador de Beetle Bailey, e Sylvan Bick, editor do King Features Syndicate. Eles estavam à procura de um desenhista para uma nova tira em quadrinhos, e tinham ficado impressionados com seu trabalho em The Tracy Twins. Na verdade, ambos tinham chegado ao nome de Dick Browne por caminhos diferentes, depois de ter feito uma lista de vinte desenhistas possíveis.
Quando Sylan Back ligou para Browne na Johnstone & Cushing este se encontrava desenhando. No telefone, Back se identificou e perguntou na lata se ele estaria interessado em desenhar uma tira em quadrinhos e ele respondeu que sim, pois era aí que estava o dinheiro. Depois pediu seu número telefônico para retornar a chamada. O engraçado é que Browne achava que tudo era uma armação de Stan Drake.
Então, Browne ligou para Back este lhe falou que nesse momento estava reunido com Mort Walker e perguntou-lhe se teria problemas em dar um pulo nos escritórios da KF. Casualmente, nessa época Stan Drake assinara com o mesmo KF contrato para uma nova tira, The Heart of Julieta Jones e Back lhe perguntou se conhecia Dick Browne. “Por suposto. Ele é o maior de todos!” E com esse aval, nada menos que de Stan Drake, Dick Browne entrou de cabeça no mundo das tiras para jornal.
O encontro com seu agora parceiro Mort Walker foi simples. Um apertão de mãos, muita conversa jogada fora, algumas cervejas na famosa lanchonete Pen and Pencil - que ficava enfrente aos escritórios da KF- e foi assim que tudo começou.

No começo, Browne ficou com receio de se desvincular da Johnstone & Cushing para abraçar um projeto que poderia não dar certo. Fez um acordo com a agência em que trabalharia meio período por um ano enquanto pelas tardes se dedicava a preparar as tiras em seu estúdio. Hi & Lois começou a ser publicada em 1954, de início em poucos jornais, mas a partir do terceiro mês a coisa engrenou, chegando a 120 jornais no final do primeiro ano. Então, Dick Browne, tal como tinha sido combinado, saiu da Johnstone Cushing.
Hi & Lois, uma tira de família surgida como spin-off do Beetle Bailey, nunca chegou a atingir a fama deste mas também não fazia feio, ultrapassando os mil jornais lá pelo ano de 1982. E lhe rendeu o Reuben Award como melhor cartunista no ano de 1962.

 

Nasce o viking mais famoso das tiras em quadrinhos.

Para o ano de 1973, dezenove anos de parceria com Mort Walker, Dick Browne estava já com 56 anos. Sofrendo de problemas da vista, algo realmente trágico para um cartunista, e outros problemas de saúde tão comuns na media idade, Browne começou a temer por seu futuro. Ganhava bem desenhando Hi & Lois, mas não estava preparado para possíveis eventualidades nem despesas com médicos e ainda tinha uma família que dependia dele. Então, decidiu que tinha que criar uma tira e oferece-la para o King Features.
Sentado à prancheta rabiscou de primeira um elmo de guerreiro viking e depois um rosto arredondado e barbudo, na verdade seu próprio rosto. A seguir completou-o com um corpo volumoso e vestiu-o como aqueles guerreiros nórdicos dos contos que uma tia lhe narrara na infância. A essa nova personagem deu-lhe o nome de Hagar, o Horrível, que era a maneira carinhosa como os filhos se referiam a ele. Então, numa das jogadas mais geniais das comic strips, transformou aquele guerreiro num pacato chefe de família que para ganhar seu sustento lidera uma horda de bárbaros pela era das trevas já seja invadindo a Inglaterra ou saqueando castelos. Deu-lhe, também, uma família e com ela os problemas cotidianos do homem moderno. E munido com algumas tiras já prontas foi bater na porta do editor, na época Bill Yeates.

Depois de analisar a tira os executivos da KF deram a luz verde e começaram a oferecê-la para os jornais. Já de cara duzentos jornais compraram a tira antes mesmo de ser publicada e para 1975 esse número chegou a quinhentos jornais. No ano seguinte ultrapassou os oitocentos e em 1978 passou dos mil jornais, no crescimento mais rápido de uma tira na história das comic strips. Com o tempo Hagar o Horrível chegou a ser publicada em mais de 2 mil jornais pelo mundo, ainda quando Dick Browne estava no comando. Depois esta cifra caiu para 1800, o que não é pouca coisa no conturbado mundo das tiras para jornal, e se estabilizou.
Quando analisamos a razão do sucesso de Hagar, somos imediatamente atraídos pelo humor sofisticado e ao mesmo tempo ingênuo, pelas personagens cativantes, pelas situações engraçadas, mas raramente paramos para pensar no baita artista que Dick Browne era. Acostumados como estamos ao traço limpo e pasteurizado de Beetle Bailey, Dennis the Menace, Blondie e outros, pouco reparamos que Browne trouxe para as tiras uma certa sujeira que não existia mais. Essa mistura de sombras e achurias que lembram o underground são exatamente influência do trabalho de Robert Crumb, de quem Dick era admirador.

A maneira como ele contorna os desenhos com aquele traço levemente tremido e cheio de risquinhos fazem lembrar ao leitor que por trás daquela página há um ser humano com acerto e erros e essa sensação é fabulosa.
É desnecessário dizer que com Hagar the Horrivel a roda da fortuna girou definitivamente a favor de Dick Browne. Ele ficou rico, o suficiente para poder pagar bons médicos e um plano de saúde. Depois, com a família, saiu da fria Wilton em Connecticut para a ensolarada Sarasota na Florida de onde continuou fazendo a tira, agora ajudado por seu filho Chris e por Bud Jones nos roteiros. O trabalho que ele fazia em Hi & Lois agora era realizado por seu filho Chance e pelos filhos de Mort Walker.

Dick Browne é chamado muitas vezes, inclusive pelos próprios cartunistas, como o “cartunista dos cartunistas” e tal título não é à toa. Ele que ganhara o Reuben com Hi& Lois, repetiu a façanha, agora com Hagar em 1973. Único caso de um desenhista que ganhou o prémio duas vezes e com tiras diferentes! Ele também abocanhou cinco vezes o NCS Best Humor Strip of the Year e o prêmio Elsie Segar de 73 “por sua contribuição à arte do cartum”. Mas, também teve prêmios internacionais, entre eles o “Max und Moritz” de 1984, concedido pela German Cartoonists Association e o “The Best Overseas Cartoon” de 1983, 1984 e 1986, concedido pelo The Cartoonist Club of Great Britain, assim como o British Club’s prêmio de 1988.

Depois de uma longa batalha contra o câncer, Dick Browne morreu aos 71 anos no 4 de junho de 1989. Seu filho Chris continua até hoje fazendo as tiras do viking mais famoso das tiras em quadrinhos.


Clique aqui e saiba como adquirir sua revista GrapHiQ!


©2001-2017 GrapHiQ Brasil e Mario Latino - Todos os direitos reservados

Created and Hosted By MPG Studios